O TRÁFICO “PRIVILEGIADO” E A NOVA SÚMULA DO STF PARA REGIME INICIAL ABERTO

A Lei 11.343/2006, conhecida como “Lei de Drogas”, é um marco legislativo no Brasil que visa prevenir e reprimir o tráfico e o uso indevido de substâncias entorpecentes. No entanto, ela também prevê a possibilidade de aplicação do chamado “tráfico privilegiado” que, na realidade, trata-se de uma categoria jurídica que corresponde a uma causa de diminuição de pena em certos casos em que o agente seja considerado primário, seja portador de bons antecedentes e não esteja envolvido com organizações criminosas.

Embora possa parecer um assunto complexo e que divide opiniões, é inegável que o uso de substâncias entorpecentes e suas implicações penais, é um tema de atenção social e não podemos deixar de refletirmos e enfrentarmos a eficácia e justiça penal na aplicação legal nesta presente Coluna.

É importante destacar inicialmente que, apesar de ser comumente conhecida a figura penal como ‘tráfico privilegiado’, essa designação não se trata efetivamente de um “privilégio” conferido à figura em questão, já que a Constituição trata a todos iguais perante a lei, observadas as suas diferenças.

Portanto, quando nos referimos a um crime tecnicamente privilegiado, não só o “tráfico” mas qualquer outro que tenha essa alcunha “privilegiado”, estamos lidando com uma conduta que se assemelha à conduta original prevista no “caput” do artigo, porém, com penalidades mínimas e máximas inferiores ou com causa redutora de pena, devido às peculiaridades e singularidades que o próprio Legislador já previu ao editar a Lei.

Um exemplo de crime tecnicamente privilegiado é o infanticídio. Ao analisarmos o homicídio e o infanticídio, percebemos que o infanticídio é uma forma também “privilegiada” de homicídio, uma vez que ambos os crimes envolvem a ação de tirar a vida de alguém, porém o infanticídio possui penalidades mínimas e máximas consideravelmente inferiores às do homicídio em si, pelos aspectos singulares que a mulher pode apresentar durante e logo após o parto, e que, pelo princípio da isonomia, não podem ser tratados como outro homicídio qualquer.

Recentemente, em uma sessão virtual, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) aprovaram uma Súmula Vinculante que estabelece o regime aberto para o crime de tráfico privilegiado, desde que o réu não possua reincidência, ou seja, desde que não tenha sido definitivamente condenado por outras práticas criminosas num lapso de 5(cinco) anos.

Essa decisão do Supremo teve como base o entendimento de que o tráfico privilegiado, conforme previsto na Lei de Drogas, pode resultar em uma pena mais branda para certos casos, levando em consideração aspectos como primariedade e bons antecedentes do acusado. A medida visa garantir uma abordagem mais equilibrada no tratamento desses casos, proporcionando uma oportunidade de ressocialização ao réu, desde que esteja em conformidade com os requisitos estabelecidos pela súmula. A decisão do STF do Ministro Fachin refletiu um debate em curso sobre as políticas de combate ao tráfico de drogas, buscando um equilíbrio entre a punição e a reabilitação dos infratores. Eis o teor do enunciado:

“É impositiva a fixação do regime aberto e a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos quando reconhecida a figura do tráfico privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei 11.343/06) e ausentes vetores negativos na primeira fase da dosimetria (art. 59 do CP), observados os requisitos do art. 33, § 2º, alínea c e do art. 44, ambos do Código Penal.”

 

Além disso, a pena privativa de liberdade pode ser substituída por medidas restritivas de direitos, desde que o réu não seja reincidente específico, ou seja, não tenha condenações transitadas em julgado pela mesma natureza de crimes considerados hediondos ou equiparados a hediondos, conforme a Lei 8.072/1990.

Cabe destacar que, diferente de outros crimes hediondos ou equiparados a hediondos (v.g. tortura, terrorismo etc.) o tráfico ilícito de entorpecentes é um delito que, ao menos a prima facie, não imprime violência ou grave ameaça à pessoa. Em outras palavras, as pessoas por razões diversas ou mesmo por dependência química, procuram deliberadamente por compra de drogas. A gravidade do uso dessas substâncias para terceiros em razão dos efeitos provocados aos usuários, aos seus familiares e ao entorno social é que tornam a conduta altamente reprovável no nosso país. Em alguns países, contudo, o enfrentamento a este grave problema tem sido realizado de forma diversa, sem o uso ostensivo de segurança pública ou direito penal.

A fundamentação para essa decisão foi baseada, em grande parte, nos argumentos apresentados pelo Ministro Dias Toffoli, que propôs a súmula em 2019, quando ocupava a presidência da corte. Em seu voto, ele destacou a importância de levar em consideração tanto a quantidade da pena imposta quanto as condições pessoais do condenado ao determinar o regime inicial de cumprimento da pena por tráfico privilegiado.

Essa nova Súmula n. 512 do STF visa proporcionar um tratamento mais adequado e proporcional aos casos de tráfico privilegiado, levando em consideração a individualização da pena e as circunstâncias favoráveis do réu. No contexto da defesa da redação da Súmula, o Ministro Toffoli ressaltou que o Supremo Tribunal Federal tem, sistematicamente, concedido habeas corpus em casos de reconhecimento do tráfico privilegiado, desde que não haja circunstâncias negativas na primeira fase do cálculo da pena (conforme previsto no art. 59 do CP). Nessas situações, o regime aberto é fixado e a pena privativa de liberdade pode ser substituída por uma pena restritiva de direitos. (grifo nosso)

Ele argumentou que a importância da Súmula vinculante reside não apenas no grande número de habeas corpus e decisões favoráveis proferidas pelo Supremo sobre o assunto, mas também na missão constitucional da Corte de zelar pela integridade da legislação penal e processual penal e pela uniformidade de sua interpretação. Segundo o Ministro, a redação proposta para a Súmula combina os dois elementos necessários para a determinação do regime inicial de cumprimento da pena: a quantidade da pena imposta (conforme o artigo 33, § 2º do Código Penal) e as condições pessoais do condenado (conforme o artigo 33, § 3º do Código Penal), que são avaliadas na primeira etapa do cálculo da pena.

Ao apoiar o voto do Relator, Gilmar Mendes explicou que, de acordo com o artigo 33, § 2º e o artigo 44, I do Código Penal, o regime inicial aberto e a substituição por pena restritiva de direitos são possíveis em condenações com pena igual ou inferior a quatro anos.

Mendes afirmou que a redação da Súmula está em sistemática conformidade com essas normas, pois, uma vez aplicada a redução prevista para o tráfico privilegiado e ausentes circunstâncias judiciais negativas na primeira fase do cálculo da pena, a diminuição resultará necessariamente na redução máxima da pena 2/3 (dois terços), resultando em uma pena definitiva igual ou inferior a quatro anos.

Por fim, o Ministro Gilmar Mendes também mencionou que alguns tribunais de origem têm tentado contornar o entendimento estabelecido pelo Supremo, deixando de utilizar a expressão “hediondez” na determinação do regime e afirmando apenas que, nos casos de tráfico de drogas, o regime fechado é o único adequado.

Cabe destacar ainda que, na data de hoje, a Jurisprudência têm se movimentado diante de outras falhas sistêmicas na legislação e como forma de enfrentar o problema do encarceramento em massa.

Na data de hoje, quarta-feira (17), a partir das 13h, outra Súmula, a n. 231 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que trata da impossibilidade de fixação da pena abaixo do mínimo legal, passou a ser rediscutida por convocação feita pelo ministro Rogerio Schietti Cruz cuja transmissão ao vivo se iniciou pelo canal do STJ no YouTube.

Consideramos que as mudanças nas duas referidas Súmulas, tanto do STF acima apontada e a do STJ, com a discussão iniciada na tarde de hoje, devem ser objeto de reflexão para os rumos das ciências criminais e do direito de defesa, bem como de novas formas de resolução de conflitos na sociedade para além do direito penal.

 

Por Equipe Rafhaella Cardoso Advocacia, Jéssica Rodrigues Amaral e Rafhaella Cardoso.

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