Pode (e deve?) o Direito Penal criminalizar a criação e divulgação de “fake news”?

1 – O que são as “fake news”? Trata-se de um fenômeno contemporâneo?

As “fake news”, ou, em sua tradução literal, são as chamadas “notícias falsas”. Apesar do termo estar em voga nos últimos anos no Brasil e no mundo, as “fake news” sempre existiram na história.

Quem se lembra das aulas de história em que já estavam presentes as “fake news” no ocorrido em 30 de setembro de 1937, quando os ouvintes do programa de rádio “Hora do Brasil” foram surpreendidos com o anúncio de um plano que detalhava um golpe comunista contra Getúlio Vargas. Os direitos constitucionais foram suspensos. Esta, na verdade, foi uma falsa notícia criada pelo ex-general Olímpio Mourão para garantir que Getúlio Vargas permanecesse no poder e implantasse a ditadura do Estado Novo (Plano Cohen).

O que podemos colocar de significativo na temática atual é a questão da rapidez e da proporção que essas notícias falsas podem tomar num contexto social. Em períodos em que não havia meios de comunicação como a televisão e a internet, as “fake news” demoravam a chegar a um grande número de pessoas através do boca-a-boca ou dos folhetins impressos.

Com a celeridade provocada pela Internet, qualquer indivíduo em tempo real pode divulgar alguma notícia, e, numa fração de segundos, um número indefinido de pessoas no mundo todo pode acessar esta informação.

 

2 – As “fake news” estão associadas ao direito fundamental à liberdade de expressão?

 

Apesar de muitos atrelarem a possibilidade de divulgar notícias, mesmo não tendo a certeza de que ela é verdadeira, ao direito fundamental da liberdade de expressão estampado no art. 5º da CF/88, a relação entre essas duas noções não é possível.

Isso porque quando tratamos do conteúdo precípuo da liberdade de expressão, este direito fundamental está correlacionado ao direito de manifestar o pensamento, emitir suas opiniões ou ideias, bem como de se expressar por meio da arte, da pesquisa, da ciência e da comunicação, mas sem qualquer excesso ou sem que aquelas manifestações possam provocar ações de violência ou retaliações do governo.

Da mesma forma como o direito à liberdade de expressão é previsto, ele é também limitado e seus abusos e excessos deverão ser coibidos pela própria Constituição e pelas leis infraconstitucionais, pois, imputar um fato criminoso a alguém que se sabe ser inocente não é uma mera “liberdade de expressão”, é crime de calúnia previsto no art. 138, caput do Código Penal, sem prejuízo das causas de aumento de pena previstas no art. 141, mormente a do § 2º: “Se o crime é cometido ou divulgado em quaisquer modalidades das redes sociais da rede mundial de computadores, aplica-se em triplo a pena. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019).”

 

3 – Há projetos de lei em trâmite para criminalizar o uso das “fake news”? Algum caso recente se tornou emblemático?

 

De acordo com a Agência Senado [1], há vários Projetos em análise no Legislativo Federal que buscam combater a desinformação e “fake news”.

Há anos tem se enfrentado os problemas advindos da desinformação no país. Estão em trâmite, aproximadamente, 17 propostas para alterar a legislação em vigor ou para criar leis com o objetivo de tornar crime a criação e a distribuição de notícias falsas na internet e nas redes sociais, e definir punições.

Um desses projetos visa impedir a publicação de anúncios em sites que divulgam desinformação e discurso de ódio (PL 2.922/2020). Já outro projeto impõe que as autoridades públicas que divulgarem “fake news” poderão ter que responder por crime de responsabilidade (PL 632/2020).

Inúmeras outras propostas já foram apresentadas durante a CPI da Covid: tais como a que obriga os provedores de rede sociais a combater perfis “fakes” ou “fraudulentos”, bem como veda a disseminação de notícias falsas (PL 3.814/2021) e, com destaque ao Projeto de Lei que visa incluir novos tipos penais no Código Penal, dentre os crimes contra a paz pública, a fim de prever uma hipótese que criminaliza quem criar ou divulgar notícia que sabe ser falsa para distorcer, alterar ou corromper gravemente a verdade sobre tema relacionado à saúde, à segurança, à economia ou a outro interesse público relevante” (PL 3.813/2021).

Além disso, houve o Projeto de Lei Complementar que visa combater a desinformação relacionada ao processo eleitoral – (PLP) 120/2022 – tornando inelegível quem divulga notícia falsa sobre urna eletrônica e sobre o processo eleitoral.

Aliás, no último dia 30 de junho de 2023, o ex-presidente Jair Bolsonaro foi julgado pelo Plenário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que reconheceu, por maioria de votos (5 a 2), como abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação por reunião convocada com embaixadores em 18 de julho de 2022. Com a decisão majoritária, foi declarada a inelegibilidade do ex-presidente da República Jair Bolsonaro por oito anos, contados a partir das Eleições 2022[2].

Alguns dos Ministros que votaram pela inelegibilidade do ex-presidente, sustentaram a tese de que houve o uso indevido dos meios de comunicação para promover a reunião, e, o impacto social do uso das redes digitais nesse contexto não deveria ser menosprezado. “É grave quando o caos informacional se instala na sociedade, e é ainda mais grave se esse estado é planejado e advém de um discurso do presidente da República”, advertiu o ministro André Ramos, ao destacar que “a confiança dos eleitores nas instituições democráticas deixa de existir e, com isso, a própria liberdade de voto fica viciada”.

Além disso, afirma-se nos votos vencedores do julgamento pelo TSE que o ex-presidente teria se beneficiado da liberdade de expressão para expor ideias que, segundo eles, “atacavam a democracia por mais incisivas que sejam determinadas colocações, críticas, discordâncias e embates ideológicos (…) com ataques comprovadamente infundados e absolutamente falsos, sistemáticos e notórios contra a urna eletrônica, o processo e a Justiça Eleitoral”[3].

 

4 – Apesar da importância de se combater a desinformação e a disseminação das “fake news” é correto se valer do Direito Penal para proteger a sociedade desse tipo de prática?

 

Trazendo as lições do professor catedrático espanhol Jesús-María Silva Sánchez[4], com quem tive a honra de apreender conteúdos durante minha passagem pela UPF-Barcelona, é evidente o fenômeno da expansão do Direito Penal na sociedade pós-industrial, funcionalizando a este ramo do direito tarefas de proteção de bens jurídicos supra-individuais baseados na noção de risco e perigo, criando-se figuras típicas que possam resguardar a sociedade desses novos enfrentamentos, flexibilizando garantias penais em prol de imputação penal baseada nessa nova e complexa realidade.

Isso porque o cenário de riscos (prováveis, possíveis ou imaginários) em que vivemos com a era de Internet e globalização, tem sido evidenciado com a disseminação rápida de (des)informações, que podem gerar, em alguns contextos específicos, prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação a vários grupos de pessoas no mundo todo.

Porém, para que consideremos a disseminação de “fake news” um risco social insuportável do ponto de vista do direito penal, ou seja, quando não haja outros meios suficientes para prevenir e combater essas condutas de forma adequada, aí sim podemos entender que, de forma irrisória e mínima os bens jurídicos da paz social e da fé pública podem ser tutelados de forma a se coibir tais atos por meio do jus puniendi.

Assim como trazido pelo autor espanhol acima, o traço de tipificação peculiar nesses novos contextos em que o direito penal é chamado a tutelar, ganha contornos de periculosidade abstrata, ou seja, criam-se tipos penais mormente abertos e de perigo abstrato, baseando-se em projeções de riscos e supostos danos futuros, o que não se perfaz sem o desprezo a determinadas garantias indeléveis do direito penal, seja a transposta pelo princípio da intervenção penal mínima ou mesmo a advinda do princípio da ofensividade penal.

Um exemplo dessa característica marcante do direito penal do risco, fruto do fenômeno de sua expansão pós-moderna, está na elaboração de Projetos de Lei como o PL 3.813/2021[5].

Segundo este projeto de lei, seria incluído no Código Penal, entre os crimes contra a paz pública, o tipo penal consistente em: “criar ou divulgar notícia que sabe ser falsa para distorcer, alterar ou corromper gravemente a verdade sobre tema relacionado à saúde, à segurança, à economia ou a outro interesse público relevante”(g.n.).

Observe-se que estamos diante de um crime de perigo ou mera conduta, ausente da ofensividade concreta, bastando que o agente atue com o dolo (com vontade mais consciência) de que sabe ou tem condições de saber que a notícia é falsa.

Além disso, mesmo que a pessoa “crie” uma notícia falsa mas não a divulgue ou sequer tenha intenção de divulgá-la, estaria sujeita também ao tipo penal neste novo projeto de lei. Entendemos que, nesse caso, a antecipação de perigos pelo direito penal destoa da necessidade de juízo de (potencial) lesividade da conduta, tão importante para uma legítima – e não meramente simbólica – atuação do Direito Penal[6].

Especialmente nesses pontos, em que o legislativo quer demonstrar eficientismo penal sem a lógica racional do uso deste ramo do direito em situações que realmente possam lesionar ou gerar riscos potenciais de lesão a bens jurídicos essenciais da harmoniosa vida em sociedade, sacrificando garantias penais presentes na Carta Magna e na esteira de direitos humanos reconhecidos mundialmente, não nos parece sensato que se funcionalize a máquina estatal para uma resposta claramente política e com propósitos vindicativos ocasionais.

Com Direito Penal não se brinca de legislar. Não se utiliza deste ramo ao bel-prazer do legislativo sem a racionalidade do uso da técnica e sem respeitar as demais garantias da Constituição. Não se pode conquistar a garantia da liberdade de expressão ou dos demais preceitos democráticos violando-se os próprios limites constitucionais a custo de uma punição incoerente e simbólica.

 

Notas:

 

[1] Agência Senado. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/09/26/projetos-em-analise-no-senado-combatem-desinformacao-e-fake-news . Acesso em 11.jul.23.

[2] TSE. Disponível em:https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2023/Junho/por-maioria-de-votos-tse-declara-bolsonaro-inelegivel-por-8-anos Acesso em 11.jul.23.

[3] TSE. Disponível em: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2023/Junho/por-maioria-de-votos-tse-declara-bolsonaro-inelegivel-por-8-anos . Acesso em 11.jul.23.

[4] SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luíz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT, 2002.

[5] Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/150544?_gl=1*1rienh9*_ga*NzUyNzQxMzU4LjE2NzgxNDU5ODA.*_ga_CW3ZH25XMK*MTY4OTEyNzM5NS4yLjEuMTY4OTEyNzQ5Mi4wLjAuMA.. Acesso em 11. jul.23.

[6] Disponível em Conjur: https://www.conjur.com.br/2023-jul-11/duran-goncalez-responsabilizacao-penal-fake-news . Acesso em 11.jul.23.

 

Por Equipe Rafhaella Cardoso Advocacia.

Rafhaella Cardoso, sócia fundadora da Banca Rafhaella Cardoso Advocacia é Advogada Criminalista, Pós-Doutora em Processo Penal pela UFMG, Doutora em Direito Penal Econômico pela USP e autora de livros e artigos jurídicos.

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