Você sabe o que é Fishing expedition ou “pescaria probatória” no processo penal?

O termo em inglês Fishing expedition, também conhecido em sua adaptação para a língua portuguesa, chamado de “pescaria probatória”, tem sido objeto de recentes discussões sobre os limites da atividade investigativa especulativa indiscriminada.

Isso acontece naquelas situações em que as Autoridades Policiais ou Ministeriais procuram de forma “especulativa” seja no ambiente físico ou digital, sem uma “causa provável”, ou mesmo sem um “alvo previamente definido”, o que se contrapõe com a necessidade do devido processo legal, ou, mais precisamente, devida “investigação criminal legal”, que deve obedecer, nos atuais contornos democráticos da Carta Magna de 1988 e da legislação ordinária, limites autorizados.

Quando a atividade investigatória conduzida por autoridades públicas promove esse tipo de pesca, isso pode soar como desvio de finalidade na ânsia por elementos capazes de atribuir responsabilidade penal a alguém, maculando os princípios reitores da Administração Pública insculpidos no art. 37 da CF, quais sejam: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

A expedição probatória é típica de um modelo inquisitorial de investigação criminal e, por pior e mais inconstitucional que possa ser, é uma prática recorrente no Brasil, pois alguns representantes das Autoridades com legitimidade para investigar acabam se aproveitando de espaços de exercício de poder de forma totalmente anômala e desconstruindo a hierarquia das garantias constitucionais do indivíduo por interesses escusos ou de máximo eficientismo da atuação policial e/ou ministerial.

Com essas formas de atuação, direitos fundamentais indeléveis do indivíduo (v.g. como a intimidade, privacidade, honra etc.) são violados para além dos horizontes legais de flexibilização em nome de interesses investigatórios.

Lembram daquele cacoete: “não tenho provas, mas tenho convicções”? Essa frase ficou emblemática durante a fatídica operação Lava-Jato, em que, graças ao uso de meios escusos e de serviços paralelos de inteligência, ousa-se atribuir aos “achados” nas pescas probatórias especulativas como situações definidas como “fonte independente” ou “descoberta fortuita de provas” a fim de autorizar o seu uso com base no art. 157 do CPP, o que, em verdade, não passam de provas ilícitas por natureza ou derivação.

Qualquer atividade pública e orientada por regras legais exige propósito. Investigar criminalmente é uma delas.

Por essa razão, qualquer medida cautelar inominada ou ato de investigação especulativa indiscriminada, sem objetivo certo ou declarado, que busca, assim como um pescador, “lançar suas armas ou redes para a expectativa de pegar ou pescar algo” para subsidiar uma futura acusação ou para tentar buscar evidências sobre a prática de futuros crimes é uma atividade ilegal por parte dos agentes públicos.

O ordenamento jurídico brasileiro não admite a “fishing expedition” no processo penal para buscar elementos incertos e sem propósitos na ânsia de achar algo para imputar negativamente à alguém, pois isso ofende não só os princípios de legalidade, moralidade e transparência da atuação investigativa estatal, como também é limitada pela extensão do princípio da não-autoincriminação, ou seja, de que ninguém pode ser obrigado a produzir nem colaborar com a produção de provas contra si mesmo.

Cabe citar um exemplo já elucidado em julgados do STJ[1] e STF[2]: em um Mandado de Busca e Apreensão a ser cumprido em desfavor de algum profissional ou em desfavor de uma empresa, em que pese a autoridade policial, ministerial ou judiciária tenham delimitado o objeto da medida judicial, como regra e obediência aos preceitos da CF e do CPP, muitas vezes há situações em que, na prática, sem a supervisão de um advogado com experiência em investigação defensiva e com know-how sobre “controle da cadeia de custódia da prova no processo penal”, podem vir a ser cometidos excessos, tais como: o acesso ilimitado a informações estratégicas e confidenciais dos sócios e acionistas, ao banco de dados de contratos e clientes, bem como outras questões resguardadas também pela LGPD, que se revelam medidas totalmente arbitrárias e desproporcionais.

Os indícios de autoria antecedem as medidas invasivas, não se admitindo em um Estado Democrático de Direito que primeiro sejam violadas as garantias constitucionais para só então, em um segundo momento, e eventualmente, se justificar a medida anterior, sob pena de se legitimar verdadeira fishing expedition, conhecida como pescaria probatória, ou seja, “a procura especulativa, no ambiente físico ou digital, sem ‘causa provável’, alvo definido, finalidade tangível ou para além dos limites autorizados (desvio de finalidade), de elementos capazes de atribuir responsabilidade penal a alguém”. [3]

Uma outra situação já considerada pela jurisprudência dos estados como “fishing expedition” e também considerada ilegal, foi a citada num julgado do TJDFT [4] em que o Relator que acolheu preliminar de nulidade das provas colhidas no momento da prisão em flagrante do réu, por ilegalidade da busca e apreensão realizada. Isso porque, segundo os autos, os policiais teriam entrado na residência do réu com autorização de sua esposa, com o intuito de procurar por terceira pessoa em fuga, mas, sob o pretexto de sentir cheiro de maconha, acabaram vasculhando os pertences do apelante e encontrando grande quantidade de entorpecente, uma arma de fogo e um celular produto de furto. Ao analisar o recurso, o Relator salientou que o STJ tem repudiado a prática do chamado fishing expedition, ou seja, a busca especulativa por provas, caracterizada pela diligência desvirtuada de seu objetivo principal, por meio do recolhimento de provas aleatórias, sem prévia suspeita. Esclareceu que, no presente caso, os policiais excederam os limites da autorização recebida pelo réu e deram início a “uma busca aleatória por outros indícios, invadindo e violando o direito à intimidade”, o que descaracterizou o encontro fortuito de provas. Entendeu, assim, que os policiais, ao entrarem na residência do réu, ainda que com autorização verbal de um morador, “ultrapassaram os limites da busca autorizada e colheram provas sobre crimes diversos, mediante evidente invasão da privacidade dos moradores, em busca não autorizada, de forma a tornar clara a ilicitude das provas que embasam a acusação contra o réu.

Em situações como estas, reconhecida a arbitrariedade e a falta de foco da investigação baseada em “pescaria probatória” caberá com isso alegar a tese da ilicitude das provas que lastreiam a acusação, combatendo a tal “fishing expedition” e, em favor do Cliente que teve sua intimidade, privacidade e sigilo profissional violados, pugnar pela necessária absolvição do acusado, com fundamento no artigo 386, II, do CPP.

Notas:

[1] STJ. AgRg no RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 62.562 – MT(2019/0374119-3)

[2] STF. MS 33340, Relator(a): LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 26/05/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-151 DIVULG 31-07-2015 PUBLIC 03-08-2015)

[3] ROSA, Alexandre de Moraes da. Prática de fishing expedition no processo penal. Conjur. Limite Penal. https://www.conjur.com.br/2021-jul-02/limite-penal-pratica-fishing-expedition-processo-penal>. Acesso em 1º/07/2023.

[4] TJDFT. Acórdão 1656667, 0710984-95.2021.8.07.0001, Relator: Josaphá Francisco dos Santos, Segunda Turma Criminal, data de julgamento: 26/1/2023, data de publicação: 8/2/2023.

 

Por Equipe Rafhaella Cardoso Advocacia.

Rafhaella Cardoso, sócia fundadora da Banca Rafhaella Cardoso Advocacia é Advogada Criminalista, Pós-Doutora em Processo Penal pela UFMG, Doutora em Direito Penal Econômico pela USP e autora de livros e artigos jurídicos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *