A violência patrimonial silenciada: os casos Naiara Azevedo, Ana Hickmann e Larissa Manoela

Em 2023, várias foram as notícias que relataram inúmeras hipóteses em que mulheres famosas alegam que seus companheiros e familiares, em tese, estariam cometendo atos de violência patrimonial. Mas é claro que não só elas – as ricas e famosas – que sofrem diariamente com essa forma de violência, que acaba sendo silenciada na maioria dos lares brasileiros.

A atriz de 22 anos, Larissa Manoela, relatou na mídia a sua história do rompimento com os pais, após descobrir que ambos detinham a maior parte do patrimônio construído desde que ela tinha quatro anos de idade. Além dela, os casos de agressão doméstica seguidos de pedidos de medidas protetivas como os denunciados e solicitados pela ex-modelo e apresentadora Ana Hickmann e também pela cantora Naiara Azevedo se somam a inúmeros relatos em todo o país.

Somente neste ano, 529.772 vítimas fizeram pedidos semelhantes à justiça. Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apontam que entre janeiro e novembro deste ano, os Tribunais de Justiça brasileiros concederam integral ou parcialmente 414.413 dos pedidos de proteção feitos por mulheres que denunciaram violência doméstica. (https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/ana-hickmann-e-naiara-azevedo-ampliam-estatisticas-de-medidas-protetivas-no-brasil/ )

Mas afinal de contas, o que pode ser compreendido como violência patrimonial contra a mulher?

Uma das práticas de violência contra a mulher que ainda são pouco exploradas e acabam sendo silenciadas pelos órgãos do sistema de justiça criminal brasileiro é a patrimonial, ou seja, aquela em que o agressor pratica atos que pode gerar prejuízos financeiros ou a perda de bens que têm valor sentimental para a vítima.

Esse tipo de violência, apesar de ser muito comum no dia-a-dia, tem poucas reclamações ou ocorrências policiais registradas pelas vitimas, bem como há poucas medidas protetivas visando a garantia da mulher em relação à reiteração dessas práticas.

O texto da referida lei Maria da Penha – Lei 11.340/2006, em seu art. 7o, inciso IV, descreve como violência patrimonial qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.

Por exemplo, pode caracterizar violência patrimonial o ato de o responsável legal, que tem recursos financeiros, deixar de pagar pensão alimentícia para a mulher, ocultar, danificar ou reter bens ou recursos indispensáveis à sua autonomia financeira.

Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: (Vide Lei complementar nº 150, de 2015) que ocorra:
“I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.”

Mário Delgado, diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, elenca indicadores de que a mulher está sofrendo esse tipo de violência não é simples, uma vez que eles não são evidentes e ocorrem de maneira sutil e gradual. (Fonte: https://ibdfam.org.br/noticias/11078/Caso+Larissa+Manoela%3A+especialista+explica+o+que+caracteriza+a+viol%C3%AAncia+patrimonial )

Destaca o autor ainda que um dos principais sintomas do silenciamento e perpetuação da violência patrimonial é justamente o receio de a vítima denunciar o abuso econômico, com medo de sofrer represálias financeiras.

Podemos identificar como sinais de violência patrimonial, em muitos casos: 1) a mulher não tem controle sobre suas próprias finanças e precisa pedir permissão ao genitor(a), filho(a), cônjuge ou companheiro para fazer qualquer despesa; 2) a mulher não está trabalhando, nem estudando ou procurando oportunidades, sem justificativa plausível; se a pessoa não possui uma conta corrente individual, mas apenas a conta conjunta com o marido; 3) se a pessoa costumava ser independente financeiramente antes do relacionamento, mas agora é dependente da outra parte para tudo, gerando uma relação de subordinação desproporcional como forma de controle etc.

Ainda que seja passível de Medida Protetiva prevista no art. 22, V, da Lei 11.340/2006, para obrigar o agressor a prestar alimentos provisórios ou provisionais, a demonstração de atos de violência patrimonial contra a mulher pode gerar ações cíveis de indenização, alimentos e, até mesmo, ações de natureza penal.

Porém, ainda temos poucas políticas públicas para prevenir e reprimir a violência patrimonial, o que favorece o seu incremento e mantença na nossa sociedade patriarcal e machista.

Para se ter uma noção geral, nos dados estatísticos disponíveis no Anuário e Fórum de Segurança Pública, a violência patrimonial permanece uma “ilustre desconhecida”, constituindo “a face oculta ou invisível da violência doméstica”, ou seja, muitas vítimas sequer tem a noção de que está sofrendo um abuso econômico que a priva de buscar sair do espiral de violência, uma limitadora forma de violência doméstica que está descrita na Lei.

Cabe destacar que o nosso Código Penal permanece em descompasso com as Convenções Internacionais que tratam da prevenção e contenção das várias formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, uma vez que ainda coloca os crimes patrimoniais cometidos entre companheiros ou cônjuges como situações que sequer merecem pena, como imunidades localizadas nos artigos 181 e 182 do Código Penal. Em especial, vários especialistas entendem que tais normas penais devem ser reexaminadas como inconstitucionais pois não passam pelo crivo de convencionalidade já que sofreram efeito paralisante pela Convenção de Belém do Pará, incorporada como norma supralegal ao direito brasileiro, a partir da Emenda Constitucional no. 45/2014.

Mas o que diz o artigo 181 do Código Penal?

“Art181. É isento de pena quem comete qualquer dos crimes previstos neste título, em prejuízo: I – do cônjuge, na constância da sociedade conjugal; II – de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural.”
E o artigo 182 do CP? Estabelece que o crime previsto neste título somente será processado mediante representação, ou seja, a vítima ou seu representante legal deve apresentar uma queixa formal para que haja a instauração da ação penal.

Os referidos dispositivos – 181 e 182 do Código Penal -, quando a vítima é mulher e mantém com o autor da infração vínculo de natureza familiar, devem ser reinterpretados, pois não há mais como admitir o injustificável afastamento da pena ao infrator que pratica um crime contra sua cônjuge ou companheira, ou, ainda, alguma parente do sexo feminino.

Com fundamento diferente, porque não alude à inconvencionalidade, mas no mesmo sentido, é o
posicionamento de Maria Berenice Dias:

“A partir da nova definição de violência doméstica, assim reconhecida também a violência patrimonial, não se aplicam as imunidades absolutas e relativas dos arts. 181 e 182 do Código Penal quando a vítima é mulher e mantém com o autor da infração vínculo de natureza familiar. Não há mais como admitir o injustificável afastamento da pena ao infrator que pratica um crime contra sua cônjuge ou companheira, ou, ainda, alguma parente do sexo feminino. Aliás, o Estatuto do Idoso, além de dispensar a representação, expressamente prevê a não aplicação desta excludente da criminalidade quando a vítima tiver mais de 60 anos.” (DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência
doméstica e familiar contra a mulher. Editora Revista dos Tribunais, 2008. )

No mesmo sentido, Feix (2009, p. 209) acrescenta:
“Utilizar argumentos de proteção à família como fundamento da política criminal em caso de violência patrimonial contra a mulher é desconhecer os fundamentos históricos, filosóficos e políticos que justificam e enquadram a Lei Maria da Penha como uma ação afirmativa do Estado brasileiro, que tem como objetivo promover a diminuição da estrutural desigualdade entre os gêneros, na família e no “sagrado” lar, que tem na violência poderoso instrumento de perpetração e reprodução”. (FEIX, Virgínia. Das formas de violência contra a mulher – Artigo 7º. In: CAMPOS, Carmen Hein de (organizadora). Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Yuris, p. 201-213, 2011.)

Adotando-se a posição majoritária do Supremo Tribunal Federal é no sentido de reconhecer a natureza supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos de que o Brasil é signatário, tendo, como consequência, o efeito paralisante da eficácia da norma infraconstitucional conflitantes com aqueles. Ou seja, os arts. 181 e 182 do CP representam normas que não mais se coadunam com a sistemática de direitos humanos em favor da proteção das mulheres em nível internacional, com base em tratados como a Convenção de Belém do Pará, especialmente contra a violência patrimonial.

Propostas legislativas e enfrentamento da violência patrimonial pelo nosso sistema judicial

Antes do caso da cantora sertaneja Naiara Azevedo vir à tona, os casos Ana Hickmann e, especialmente, o que foi noticiado na situação da atriz precoce Larissa Manoela já geraram inspiração de vários projetos de lei que têm a intenção de aumentar a proteção de bens conquistados por meninas e mulheres.

Desde 15 de fevereiro de 2022 foi editada a Recomendação CNJ nº 128, orientando os órgãos do Poder Judiciário a adotarem o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, de modo a colaborar com a implementação das Políticas Nacionais estabelecidas pela Resolução CNJ no 254/2020, relativas ao Enfrentamento à Violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário.

No caso dos menores de idade, há projetos de lei alterando o Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Cabe citar o PL 3.917/2023, que estabelece medidas que “fortaleçam a salvaguarda dos direitos e interesses dos menores de idade” em relação à administração de bens. Apelidada de “Lei Larissa Manoela”, de autoria dos deputados Pedro Campos (PSB-PE) e Duarte Júnior (PSB-MA), a proposta visa obrigar o Ministério Público a analisar a participação de menores de idade em sociedades empresariais. Já o Projeto de Lei 3.914/2023, de Silvye Alves, propõe alterar o ECA para instituir o crime de violência patrimonial contra a criança e o adolescente. O PL 3.919/2023, de Marcelo Queiroz (PP-RJ), propõe a criação de um gestor patrimonial para administração de bens de menores de idade; já o PL 3.916/2023, de Ricardo Ayres (Republicanos-TO) sugere que 70% do que menores de idade ganharem nas atividades artísticas não poderão ser movimentados pelos pais ou responsáveis.

Além disso, é preciso que os profissionais que atuem nesse cenário possam adotar em suas petições o pedido ao Judiciário para que se exerça o controle de convencionalidade quanto aos artigos 181 e 182 do Código Penal, pois isso possibilitará ao julgador afastar as infames cláusulas de impunidade, no tocante aos crimes contra o patrimônio, pois, no Protocolo de Gênero do CNJ esse retrocesso legislativo alude como “normas indiretamente discriminatórias”, em que a desigualdade não é facilmente percebida, já que a lei não discrimina expressamente as mulheres.

Outra forma de romper com a dependência econômica e a violência patrimonial, foi trazida com a vigência da Lei 14.674, de 2023 prevê o direito de auxílio-aluguel às mulheres vítimas de violência doméstica, que entrou em vigor em setembro e poderá ser concedido por um juiz, que será decidido o valor com base na vulnerabilidade social da vítima.

Esclarecer as formas de violência patrimonial e educar a população para atos de retenção ou controle de patrimônio como forma de impor poderio familiar é crucial, conjuntamente com as medidas repressivas de natureza cível e criminal para coibir abusos como os que acontecem não só com as referidas atrizes e personalidades públicas, mas também, diuturnamente, nos lares brasileiros, permeados de desigualdades.

A própria natureza invisível do trabalho doméstico exercido pelas mulheres no âmbito dos relacionamentos, precisa ser desmistificada para quebrar o estigma social gerador das desigualdades, de que o patrimônio pertence a quem apoiou onerosamente no relacionamento, agregando ao homem a maior porção patrimonial por ser “provedor” e à mulher, estigmatizada como “rainha do lar”, economicamente dependente e alheia aos ganhos de forma proporcional, favorecendo o silenciamento das violências patrimoniais diuturnas.

 

Por Rafhaella Cardoso Advocacia

 

 

 

 

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