Por Rafhaella Cardoso
Advogada Criminalista. Pós-Doutora em Processo Penal pela UFMG e Doutora em Direito Penal pela USP. Fundadora da Banca Rafhaella Cardoso Advocacia. E-mail: rafhaellacardosoadvocacia@gmail.com
Instagram: @rafhaellacardosoadvocacia
PERGUNTAS E RESPOSTAS
1- SOBRE OS ATOS NOTICIADOS NO DIA 8 DE JANEIRO DE 2023 EM BRASÍLIA, QUAIS AS DIFERENÇAS E LIMITES ENTRE A MANIFESTAÇÃO POLÍTICA PACÍFICA, A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E ATOS ILEGAIS?
O direito à manifestação pacífica é um pilar da democracia, podendo ser exercido em qualquer lugar do país. A Constituição Federal de 1988 nos garante em seu art. 5º, incisos IV, XVI e XVII que: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”; bem como “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente.”; e, que “é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar.”
Além disso, este direito também é garantido pelo art. 220 da Carta Magna brasileira, que dispõe: “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.“
Consideramos assim que as manifestações são uma forma de expressão coletiva e também um exercício de democracia, pois cria um espaço público de discussão.
Acreditamos que é através das manifestações populares que, muitas vezes, a sociedade demonstra seus anseios e necessidades aos gestores do Estado e clamam por políticas públicas.
Por essas e outras razões o exercício do direito de reunião e de manifestação política, quando obedecidos os limites legais, é uma genuína afirmação do Estado Democrático de Direito.
Porém, vale aquele ditado: “a minha liberdade termina quando começa a do outro”! Isso porque a liberdade de manifestação não pode infringir outros direitos, que também são assegurados pela Constituição Federal, tais como: o direito à vida, à integridade física; à honra; à ordem democrática; ao patrimônio privado e público etc.
Outro direito fundamental importantíssimo e igualmente consagrado na Constituição Federal é a liberdade de expressão, principalmente nos incisos IV e IX do artigo 5º. Enquanto o inciso IV é mais amplo e trata da livre manifestação do pensamento, o inciso IX foca na liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação.
Mais especialmente o art. 5º, inciso IX, traz que: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;”
Além da Constituição, a Lei n. 5.250, de 9 de fevereiro de 1967 regulamenta os limites da liberdade de manifestação do pensamento e de informação. Nos dizeres legais, em seu art. 1º : “É livre a manifestação do pensamento e a procura, o recebimento e a difusão de informações ou idéias, por qualquer meio, e sem dependência de censura, respondendo cada um, nos têrmos da lei, pelos abusos que cometer.”
Porém há uma importante ressalva em seu § 1º: “Não será tolerada a propaganda de guerra, de processos de subversão da ordem política e social ou de preconceitos de raça ou classe.”
Portanto, não se pode confundir liberdade de expressão e direito à manifestação do pensamento, com o uso da palavra como instrumento para causar danos, por exemplo, à imagem, à honra, às instituições.
Todos nós sabemos que a palavra é uma ferramenta importante para a comunicação, porém é aquele tal negócio “uma palavra pode ferir mais do que um tapa”. Em outros dizeres, a palavra pode ser um instrumento de ofensa a outros direitos assegurados na Constituição e nas Leis.
Diante dos episódios noticiados na Imprensa e nas Redes Sociais sobre o último domingo (8.1.23) na Esplanada dos Ministérios, em Brasília-DF, entendemos que muitos dos manifestantes que ali estavam abusaram da finalidade constitucional de que as manifestações devem ser pacíficas e ordeiras para não gerar prejuízo a outrem.
Por terem incitado prática de crimes uns aos outros, invadido prédios públicos que representam os Três Principais Poderes de uma República Democrática: Legislativo, Judiciário e Executivo, causando vários danos ao patrimônio material e imaterial ali condensado, bem como supostamente gerando perigo comum com colocação de explosivos; os participantes podem responder por vários atos ilícitos de natureza civil, penal e até mesmo administrativa, na hipótese de serem funcionários públicos e não terem agido conforme determina a legislação para conter a ordem e os ataques.
2 – QUAIS OS POSSÍVEIS CRIMES OS MANIFESTANTES PODEM RESPONDER?
Dentre os vários crimes que os manifestantes podem responder, destaque-se os chamados “Crimes contra o Estado Democrático de Direito”, inseridos no nosso Código Penal desde 2021 com a revogação da antiga Lei de Segurança Nacional.
Há quem afirme que a invasão realizada por certos grupos políticos concretizou um temor de que haveria escalada de violência em atos antidemocráticos após as eleições e que resultassem em um episódio semelhante à invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, em 2021.
Nos EUA, os referidos atos de manifestantes foram tratados como delito de insurreição. No Brasil, o delito equivalente seria a “abolição violenta do Estado Democrático de Direito” previsto no art. 359-L do Código Penal.
Referido delito nacional prevê reclusão de 4 a 8 anos para quem “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”.
A punição pode ser ainda maior, caso tenham sido cometidos outros crimes.
Há que se cogitar ainda a possível aplicação do art. 359-M, do Código Penal, denominado “golpe de Estado”, pois para alguns especialistas os manifestantes teriam atentado claramente contra as instituições democráticas e contra um governo legitimamente constituído, já que as eleições de 2022 foram confirmadas pela Justiça Eleitoral e a suspeita de fraude foi rechaçada.
Cabe destacar ainda que as condutas de alguns dos manifestantes também podem se enquadrar nos crimes de dano qualificado ao patrimônio da União e dano contra patrimônio histórico, previstos, respectivamente, nos artigos 163, parágrafo único, inciso III e 165 do Diploma Penal.
Em algumas das filmagens, verificou-se que há a suposta prática de lesões corporais, nos termos do art. 129 do Código Penal e até mesmo de furto qualificado de bens do patrimônio público, já que houve rompimento de obstáculo e destruição de objetos, tal como previsto no art. 155, parágrafo 4º do Código Penal.
Em se confirmando o liame subjetivo e o conluio entre os participantes para a prática de diversos crimes, para além dos crimes acima eles podem responder pelo crime associação criminosa e constituição de organização de milícia paramilitar, previsto no art. 288 do Código Penal ou até mesmo pelo delito de organização criminosa, descrito na Lei de Organizações Criminosas – Lei 12.850/2013, já que a partir dos depoimentos e de demais provas pode ser comprovado a estrutura aparentemente ordenada e bem dividida em termos de tarefas e seu objetivo de praticar infrações com penas máximas maiores de 4 anos.
Diferentemente do termo leigo de que houve “terrorismo”, conforme divulgado pela mídia, não nos parece, contudo, ter havido prática legalmente definida como crime de terrorismo, pois, nos termos da Lei Antiterrorismo n. 13.260/16, exige-se detalhadamente que os fatos tivessem sido práticos por motivação de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça cor etnia ou religião, mesmo que possam ter como finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.
Há ainda uma questão importante: a Lei Antiterrorismo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei.
Há quem diga que no caso em tela não estamos falando de manifestações políticas, pacíficas, greves ou manifestações de qualquer natureza. É uma manifestação violenta, com uso de arma e ameaça às pessoas.
Além disso, não há crime e pena específico para quem promove o financiamento de prática de crimes contra o Estado Democrático de Direito. Isso porque não se pode fazer uma analogia com o crime de financiamento ao terrorismo, cuja pena varia de 15 a 30 anos de reclusão, já que, como já explicamos, não é possível enquadrar como um ato “terrorista”, pois o termo mais adequado seria de “tentativa de golpe” antidemocrático.
Neste caso, quem financiou o ato, através de fornecimento de ônibus, alimentação, bebidas e armas, se confirmado que tinha o conhecimento das possibilidades que a manifestação se transformaria em violenta, poderá ser punido com o mesmo crime que foi executado pelos participantes.
Além dessas condutas, também é apontado o crime de incitação ao crime, previsto no art. 286 do Código Penal, especialmente porque alguns manifestantes se valeram dias antes, em suas redes sociais, para conclamar outrem a participarem dos atos em Brasília-DF.
Porém, em que pese a gravidade dos fatos por estarem inseridos no contexto dos crimes contra a democracia isso não significa que seus autores serão tratados com Direito Penal Máximo, ou seja, sem alguns direitos fundamentais.
Pelo contrário, a todos deve ser resguardado o devido processo legal, com ampla defesa e contraditório, bem como por um magistrado competente e imparcial – apesar de que este é o grande desafio da questão! Os atos lesionaram, exatamente, a instituição de maior guarda da Constituição do país, e, ainda que indiretamente o STF seja vítima dos danos, será essa Corte a responsável por presidir o Inquérito e a eventual ação penal dos envolvidos.
3 – AS AUTORIDADES QUE – EM TESE – SE OMITIRAM, QUAL É A POSSÍVEL RESPONSABILIZAÇÃO JURÍDICA?
O delito de prevaricação previsto no art. 319 do CP, definido como a prática de retardar ou deixar de agir, por meio de ato de ofício, que deveria agir ou fazer, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal, poderá ser imputado às autoridades que tenham de cumprir com seus deveres legais, cuja pena é punida com até um ano, além de multa.
De fato, a postura das autoridades envolvidas no episódio deve ser apurada e investigada, pois pode ser que a invasão só foi possibilitada porque houve a conivência de órgãos policiais, o que deveria impor ao contrário, ou seja, uma pronta investigação.
Além disso, há várias infrações e sanções administrativas relacionadas, como já percebido, o afastamento e a perda do cargo em caso de envolvimento de autoridades para com a prática dos delitos.
4 – O EX-PRESIDENTE PODE VIR A SER RESPONSABILIZADO PELA INVASÃO?
O ex-presidente que encontra-se na data dos fatos, curtindo em férias em solo americano, só poderia ser responsabilizado criminalmente caso existisse provas robustas de seu envolvimento na invasão por parte dos golpistas.
Desde a CPI da Pandemia o ex-presidente foi questionado sobre atos de incitação de crimes contra o Estado Democrático de Direito e crimes contra a honra de Ministros de Estado, porém, Bolsonaro não sofreu impeachment que confirmasse que ele incitou as pessoas contra as instituições ao longo do mandato.
Além disso, diferentemente de Trump que estimulou os manifestantes a invadirem o Capitólio nos EUA em 2021, aqui no Brasil as falas do ex-presidente nunca foram claras no sentido de estimular tentativas de golpes antidemocráticos, ao mesmo tempo em que foi dúbio em não reconhecer a vitória ao oponente nas urnas.
5 – O QUE ACONTECE QUANDO SE DECRETA UMA INTERVENÇÃO FEDERAL?
Conforme se divulgou também, após os atos antidemocráticos de domingo (8/1/23), em Brasília, o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) decretou intervenção federal na Segurança Pública do Distrito Federal, pós afastamento cautelar do Secretário de Segurança de Estado do DF e, depois, do afastamento cautelar também do Governador de Estado Ibaneis Rocha, por meio de decisão do Min. Alexandre de Moraes.
A intervenção federal está prevista no artigo 34 da Constituição, e o decreto que a estabelece deve ser submetido à apreciação do Parlamento. Durante sua vigência a Constituição não pode ser emendada.
O Brasil é uma República Federativa, o que significa, na prática, que municípios, estados e Governo Federal possuem responsabilidades próprias e autonomia em sua gestão e políticas, sem que um deles interfira nas atribuições dos demais.
Porém, há exceções.
A intervenção federal é uma delas. Trata-se de uma medida “extrema e excepcional”, mas, conforme especialistas, no caso, é a “resposta necessária” para evitar uma situação de violação à ordem pública ainda mais grave no DF.
Isso porque soou a atos de guerra o fato de que, além da destruição dos edifícios públicos, também foi encontrado “artefato explosivo” dentro da Câmara dos Deputados. Com a repercussão desses atos violentos, Lula decretou a Intervenção Federal, ou “Intervenção de Estado” como é popularmente chamada.
No Brasil, é a terceira vez desde a promulgação da Carta Magna de 1988, que a União promove uma iniciativa altamente enérgica do tipo, mas a intervenção no DF difere das estabelecidas no Rio de Janeiro e em Roraima, seja pela forma de gestão, seja pelo alcance.
6 – QUAL A LIÇÃO A SER APRENDIDA A PARTIR DO 8 DE JANEIRO DE 2023?
Limites e Tolerância, são as palavras de ordem para a Democracia que esperamos seja preservada. Nenhum direito consagrado na Constituição ou nas Leis de um país é ilimitado. Todos devem respeitar os limites das leis, bem como tolerar o diferente e aprender a respeitar os limites constitucionais da própria Carta Magna quanto às manifestações populares e quanto à liberdade de expressão.
A liberdade de expressão e o direito à manifestação pacíficas representam a oxigenação da democracia, porém, a partir do momento em que utiliza de violência física ou patrimonial acaba gerando risco à ordem pública, à segurança e para uma quantidade indeterminada de pessoas, e, portanto, poderá ser alvo de atuação mais enérgica pelas Autoridades do Sistema Penal.
A democracia exige um diálogo respeitoso, com pluralidade, e, especialmente, com tolerância ao que pensa diferente de nós. Só assim conseguiremos vencer a polarização que tomou conta do país e tem dividido famílias e criado inimigos em nosso país se utilizarmos esse episódio para buscar por mais união e com o objetivo coletivo de reconstruir o país.