(IN)FIDELIDADE E REDES SOCIAIS: HÁ LIMITES LEGAIS PARA A EXPOSIÇÃO DA TRAIÇÃO?

1- Recentemente, as redes sociais dividiram opiniões sobre a forma como as cantoras internacionais Shakira e Miley Cyrus expuseram em suas canções, a dor, a comparação e a tentativa de superação após as traições sofridas por seus ex-parceiros, inclusive, acabaram faturando muito com as referidas decepções amorosas, chegando aos primeiros lugares nas plataformas musicais mundiais, sem contar no impulsionamento de suas marcas com publicidade. A Internet realmente é o local adequado para esse tipo de exposição sobre o fim de um relacionamento?

Antes de Shakira e Miley Cyrus, várias pessoas famosas e não-famosas vêm se valendo das redes sociais para fazer vários tipos de desabafos emocionais, denúncias contra crimes e contra comportamentos considerados por elas, imorais ou questionáveis apontando supostas pessoas.

Com o famoso “textão” as pessoas acabam expondo a própria vida privada para milhares de pessoas, ainda que envolva nomes e fatos desabonadores de terceiros no referido texto.

De fato, dentre essas várias manifestações de pensamento e de ideias, há mesmo relatos de injustiças sociais, clamor por esperança e, também, atos de vingança travestida de pedido de reparo.

Sabemos que a dor de uma traição pode gerar traumas e feridas emocionais incuráveis ou de difícil superação, bem como sabemos que cada pessoa reage de uma forma diante dessa triste situação.

Ainda mais quando a traição foi realizada, também, por meio de redes sociais ou aplicativos de relacionamentos (v.g. Tinder, Instagram, Happen, Grindr etc.), os famosos “estelionatos” emocionais, ou seja, quando a pessoa comprometida ou casada finge ser solteira em sites de paquera e engana não só o parceiro anterior, como também o pretenso e novo parceiro acerca do seu verdadeiro estado civil.

Porém, fica o questionamento: até em que ponto podemos fazer da Internet um Fórum para expressar nossas emoções e gerar exposições pessoais e de terceiros?

Muitas vezes, em postagens públicas há, não só a possibilidade de engajamento e apoio a quem sofreu com a traição, como também risco real de linchamento e os chamados “cancelamentos” feitos pelos diversos usuários, o que pode levar a delitos de perseguições, injúrias, difamações e até mesmo eventos de decréscimo patrimonial, como a suspensão ou perda de empregos, contratos ou de benefícios financeiros entre os envolvidos.

É importante destacar que o fato de não nos expormos em redes sociais após uma traição não significa que concordemos com o episódio ou que não sentimos a dor da mesma forma como as pessoas que expõem seus ex-parceiros. Muitas vezes, o silêncio pode significar um luto até maior pelo fim de uma relação ou mesmo significa que a pessoa procurou outros meios que ela considerou mais eficazes e discretos para lidar com sua própria dor, seja por meio de conversas íntimas com sua rede de apoio(amigos, familiares etc.) ou até mesmo a ajuda profissional de psicólogos e psiquiatras etc.

Expor uma traição de forma emocionada ou jocosa nas redes sociais é, hodiernamente, de alguma forma, querer fazer “justiça com as próprias mãos”, o que pode até parecer libertador ou “uma forma de lacração”, no linguajar dos jovens, mas nem sempre é admitido pelo nosso ordenamento jurídico de forma ilimitada, expressa e ofensiva – salvo em raras exceções legais.

Respeitar os limites legais não quer dizer que estamos a concordar com o ato de trair ou de ser infiel ao parceiro. Mas sim, para alertar os cônjuges traídos que, muitas vezes, nessa exposição, a vítima pode extrapolar e acabar se tornando o “algoz” do seu traidor, o que é pior ainda essa inversão de posições.

Em suma, por maior que seja absurda a falha moral e a desonestidade do(a) parceiro(a), há limites jurídico-legais para a exposição da vida privada nos casos de infidelidade em redes sociais, sujeitando o infrator à responsabilização civil e até criminal pelas supostas práticas.

 

2 – O adultério é crime? Não sendo crime, o traidor pode ser responsabilizado?

É preciso relembrar que o adultério deixou de ser crime no Brasil e em vários países ocidentais. Em terras brasileiras, há mais de 16 anos, quando entrou em vigor a Lei 11.106/2005, referido delito foi retirado do Código Penal, que tinha a pena de quinze dias a seis meses de detenção para a prática desleal no casamento.

Apesar da descriminalização ter ocorrido, o fato não parou de ocorrer nos cenários familiares brasileiros e, como visto, mundiais. E, muito menos parou de trazer dor e sentimento misto de luto, humilhação e vingança entre os ex-parceiros(as).

De acordo com a nossa legislação pátria, prevista no artigo 1.566 do Código Civil, a fidelidade recíproca é considerada pelos civilistas como um dos vários deveres conjugais entre os casados e, de certa forma, também entre as pessoas que se encontram convivendo em união estável.

Desta forma, quando há esta quebra objetiva da boa-fé entre os casados (estendido aos companheiros de união estável), é possível haver a incidência de danos morais e, até mesmo, de eventuais danos materiais pelos prejuízos concretos pela prática da traição.

Imagine se uma pessoa foi humilhada e exposta em redes sociais pelo cônjuge infiel a ponto de gerar depressão e até mesmo doenças sexualmente transmissíveis comprovadamente pelo parceiro? Logicamente, o dever de indenizar não só os danos morais como os danos materiais dos prejuízos com saúde e trabalho devem ser objeto de acionamento do Poder Judiciário.

Não podemos, contudo, nos esquecer que a pós-modernidade tem alterado não só nossa forma de nos relacionar com o acesso à tecnologia, mas também tem imprimido características fluidas e fugazes nos nossos relacionamentos amorosos.

Quem afirma isso é o sociólogo e filósofo polonês, Zygmunt Bauman, descrevendo em seu livro “Amor Líquido” (2003) que “relacionar-se é caminhar na neblina sem a certeza de nada”, alertando para a forma frágil que as relações afetivas têm se apresentado nos tempos modernos.

Isso porque o autor traça um paralelo entre os relacionamentos afetivos e a rapidez de informações e de acesso à tecnologia por meio das redes sociais, fazendo com que a tendência da relação de consumo pós-moderna, de não consertar o que estragou e de impulsionar o ato de comprar um objeto novo ou uma nova versão, seja repassada também para os relacionamentos afetivos. Na visão dele, essa lógica social pode sim interferir até mesmo na forma de amarmos, ou seja, é como se nada fosse mais feito para durar, assim como um bem de consumo, “se o relacionamento estragou ou tá ruim, a tendência do ser humano pós-moderno é de ‘comprar/adquirir’ um novo amor”.

Nessa perspectiva, as pessoas não querem apenas “ter” algo, mas querem estar sempre “atualizando” o objeto e o relacionamento que possuem, conduta típica dos “tempos líquidos”.

Essa visão tem sido inclusive levada aos julgamentos pelos nossos Tribunais pátrios para delimitar o nível de dano moral gerado com a quebra da fidelidade entre cônjuges, no sentido de encarar a dor e a liquidez do fim dos relacionamentos como algo da vida moderna, e para verificar se deve ou não ensejar parâmetro indenizatório.

Neste sentido, para muitos Tribunais brasileiros, em decisões recentes, para que um adultério gere danos morais indenizáveis deve estar suficientemente comprovado nos autos do processo, mormente durante a fase de audiência de instrução, que a traição gerou uma situação vexatória por meio de exposição da infidelidade num nível que ultrapasse a figura dos próprios parceiros, isto é, de dano que perpasse os limites da dor usual do fim da afetividade entre ambos.

Apenas o abalo emocional, a amargura, a desilusão e, ainda que haja desamparo material, não são suficientes para gerar a obrigatoriedade de indenização por parte do cônjuge que foi infiel.

Para ilustrar essa interferência das dinâmicas sociais nos relacionamentos amorosos, em um voto de um julgado do TJRJ de 2021, comentado no Site do IBDFAM o Desembargador Relator definiu que embora a traição cause “indizível sentimento de frustração e de fracasso afetivo”, numa sociedade marcada por “amores e relações líquidas”, não seria possível haver sanção moral ou jurídica aos que descumprem o dever de “amar o outro”. Na visão do referido Julgador, só seria válida a responsabilização civil do cônjuge traído se houvesse provas de que o infiel o humilhou ou o ridicularizou perante terceiros.

 

3 – Quais seriam os limites legais para a exposição de traições por parte dos envolvidos nas redes sociais? Quais os delitos previstos no Código Penal que limitam os “desabafos” em relação ao traído/traidor?

Para o nosso Código Penal, a conduta de divulgar algum fato ocorrido (v.g. como ter sido traído ou ter descoberto a traição por meio de um pote de geleia etc.), com o objetivo de denegrir a reputação de alguém pode ser sim considerado crime, ainda que em tom de “desabafo de rede social”.

Nosso Diploma Penal, prevê em seu artigo 139 o crime de difamação, que consiste em: “difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação. Pena prevista: detenção de três meses a um ano e multa.”

Para responder por esse crime, não importa se o fato que busca denegrir sua imagem é verdadeiro ou não, ou seja, se houve ou não traição.

Além da difamação, há outro crime que ofende a honra das pessoas, previsto no art. 140 do Código Penal, que é conhecido como crime de injúria, consistindo em atribuir palavras ou qualidades ofensivas a alguém, expor defeitos ou opinião que desqualifique a pessoa, atingindo sua honra e moral, com a intenção de ofender a dignidade pessoal ou o decoro, cuja pena é de “detenção, de um a seis meses, ou multa”.

Se os crimes acima narrados, seja a difamação ou a injúria, forem praticados na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a divulgação da ofensa, as penas cominadas aumentam-se de um terço, e, se o crime é cometido ou divulgado em quaisquer modalidades das redes sociais da rede mundial de computadores, aplica-se em triplo a pena, por força da nova redação do art. 141, do Código Penal alterado pela Lei nº 13.964, de 2019.

Em regra, para que alguém possa responder por crimes contra a honra, tais como a difamação e a injúria é preciso que a ofensa tenha sido praticada contra pessoa determinada ou determinável, para que se possa precisar o autor.

Naquelas hipóteses típicas de redes sociais, em que as pessoas acham que a outra falou mal dela mas não tem certeza, porque soou como uma “indireta”, ou seja, uma mensagem com conteúdo dúbio ou subliminar que talvez só os envolvidos ou pessoas próximas possam compreender e determinar se a ofensa foi ou não dirigida à pessoa “X”, mormente em casos de traição, é possível que o ofendido ingresse com o chamado “Pedido de explicações sobre a mensagem “indireta” de rede social”, em juízo.

Este pedido não é um processo criminal em si, mas caso o suposto o autor da ofensa não responda adequadamente, se recuse a responder ou silencie, a vítima poderá ingressar com a queixa-crime pelos crimes injúria e/ou difamação, já que nesse caso, “quem cala nas explicações sobre as indiretas, consente”!

Caberia aqui também acrescentar outros crimes relacionáveis às exposições de traição e humilhações ao traidor em redes sociais. Estamos falando dos delitos de perseguição (stalking), de violência psicológica contra a mulher e a prática de “porn revenge”.

O crime de perseguição é previsto no art. 147-A do Código Penal e consiste na conduta de “perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.” Sua Pena é de reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Podemos exemplificar situações em que o cônjuge traído passa a perseguir o traidor nas redes sociais ou em locais em que ele(a) frequenta limitando a sua liberdade ou a sua privacidade, gerando aquele temor constante.

No âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher, a Lei Maria da Penha – Lei 11.340/2006 – traz que são formas de violência contra a mulher a física, a moral, a psicológica, a sexual e a patrimonial. As humilhações constantes por meio da exposição de traições praticadas pelo cônjuge ou praticadas pela própria mulher podem configurar formas de violência moral ou psicológica.

No âmbito moral já falamos dos delitos de injúria e difamação, que ofendem a honra e a reputação da mulher. Já o delito de violência psicológica contra a mulher, incluído pela Lei nº 14.188, de 2021, consiste em “causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação”. Tem previsão de Pena de reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave.

E, por fim, pensemos que as exposições de intimidade do casal pode atingir esferas da sexualidade ou da dignidade sexual dos parceiros, o que é absolutamente mais grave, pois, em algumas situações, as vítimas chegam a cometer suicídios diante das exposições sofridas.

Acrescemos aqui uma outra situação criminosa que pode ocorrer por meio das redes sociais, também em atos de “vingança” após a traição, a chamada “pornografia de vingança” ou, conhecida no inglês como “porn revenge”. Esse termo foi criado para designar aquelas situações em que um casal termina um relacionamento, e, uma das partes divulga cenas íntimas na rede mundial de computadores, com o objetivo de vingar-se, ao submeter o ex-parceiro a humilhação pública.

O art. 218-C do Código Penal, incluído pela Lei nº 13.718, de 2018, prevê pena de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave, para quem divulga ou publica foto, vídeo ou outro registro audiovisual contendo cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia, por qualquer meio, sem o consentimento da vítima.

E mais, o § 1º do referido dispositivo penal prevê que a pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação.

Em todos esses casos, para além das condutas penalmente puníveis, a exposição de traições pode gerar também, como visto, indenizações por danos morais, nos termos acima narrados, desde que demonstrada a humilhação perante terceiros e os danos palpáveis na saúde física ou psíquica dos envolvidos pela exposição dos episódios de infidelidade.

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