Masculinidades tóxicas na era digital: violências em série na adolescência

“O amor não pode existir onde há dominação. (…) O amor não pode existir onde há dominação.” – Bell Hooks

O grito silencioso das juventudes

A série britânica Adolescência (Adolescence, BBC/Netflix, 2025), dirigida por Joanna Hogg, chegou como uma bomba emocional e social ao retratar as múltiplas camadas de vulnerabilidade juvenil. Ambientada no Reino Unido, mas com ecos universais, a trama acompanha a história de Eddie Miller (Stephen Graham), um pai emocionalmente inábil, e seus filhos Jamie (Owen Cooper) e Leah, entrelaçando temas como violência doméstica, misoginia digital, saúde mental, repressão escolar e colapso da autoridade parental.

Com 66,3 milhões de espectadores nas duas primeiras semanas, a série tornou-se um marco, com 99% de aprovação no Rotten Tomatoes e nota 91 no Metacritic. O sucesso não é por acaso: Adolescência toca em feridas sociais profundas, expondo como a masculinidade tóxica, nutrida por instituições obsoletas e redes sociais misóginas, transforma meninos em silêncios perigosos.

Crescer dói: corpos juvenis sob vigilância

Na série, Jamie diz com frieza e dor: “I got used to not being heard.” (“Me acostumei a não ser ouvido.”) Essa frase, dita num interrogatório policial (episódio 2), ecoa a pedagogia libertadora de Paulo Freire: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra.” Não ouvir os jovens é negar-lhes a humanidade. Essa ausência de escuta ativa nas escolas, nas famílias e nas políticas públicas transforma subjetividades em bombas de ressentimento. Jamie, como tantos adolescentes reais, é a síntese do menino invisível, do jovem disciplinado antes de ser acolhido.

Silêncios que falam: a estética da dor

Adolescência constrói sua força naquilo que não é dito. Gestos sutis — Eddie fumando sozinho, Leah escrevendo escondido, Jamie encarando o vazio — transformam o cotidiano em denúncia. A ausência de diálogo é a linguagem da dor.

A personagem Leah simboliza as meninas que resistem à negligência emocional. Ao dizer ao pai: “Você só vê seus próprios buracos”, ela desmascara a masculinidade fraturada que se nutre do não dito, da dureza emocional e da alienação afetiva. bell hooks nos lembra que o amor requer vulnerabilidade, e a dominação masculina é sua antítese.

Machosferas e algoritmos: o novo campo de batalha

Jamie revela à psicóloga no episódio 3 que foi chamado de “incel” por uma garota — um termo oriundo da “machosfera” digital, onde homens se reúnem em fóruns misóginos para compartilhar discursos de ódio. A cultura digital se torna extensão da cultura do estupro, agora alimentada por algoritmos e redes sociais. Segundo Djamila Ribeiro (2021), essa lógica amplifica desigualdades e fomenta ressentimentos.

A série mostra como a violência simbólica atua: Jamie é rotulado como problema na escola antes mesmo de ser escutado. Como analisa Bourdieu (2011), a violência simbólica não precisa de gritos — ela opera nos olhares, nos silêncios, nos rótulos.

A masculinidade em ruínas

O personagem Adam, filho do policial Eddie, confronta o pai no episódio 4: “Pai, você não entende. Você está perdido.” Aqui, o patriarcado se vê espelhado — e derrotado — pela nova geração. A fala simboliza o abismo entre pais criados sob valores autoritários e filhos que pedem afeto e reconhecimento emocional. Connell (1995) já alertava: a masculinidade hegemônica está em colapso. A autoridade masculina já não se sustenta no grito ou na imposição, mas precisa se reinventar no afeto e na escuta.

Marcus: a pedagogia do cuidado

O educador comunitário Marcus, interpretado por Ashley Walters, oferece o contraponto da série. Sua postura empática rompe com a lógica punitiva. Sua frase, “Escutar é mais urgente do que ensinar”, conecta-se à ética da alteridade de Lévinas, para quem reconhecer o outro é o início da justiça. Marcus não apenas acolhe; ele reconstrói subjetividades, mostrando que há caminhos possíveis fora da violência. Representa a escola que cuida, o Estado que escuta, a paternidade que acolhe.

Genealogia da masculinidade tóxica: Foucault e o poder difuso

A série mostra como o poder masculino não se exerce apenas pela violência física, mas por uma série de microviolências cotidianas: a exigência de força, o desprezo pela sensibilidade, a punição da fragilidade. Foucault (1979) afirma que o poder molda subjetividades por meio de discursos, normas e tecnologias disciplinares. Jamie internaliza que sua dor é fraca, que chorar é vergonhoso, que amar é ridículo. Ele vigia e pune a si mesmo. O resultado: raiva acumulada, silêncio endurecido, violência como linguagem.

Ressentimento e vingança: Nietzsche e a produção da dor

Nietzsche (2000) define o ressentimento como a dor transformada em moralidade reativa. Quando impedida de agir, a vontade de potência gera valores rancorosos, e o jovem ressentido transforma-se em um “criador de valores” perversos. É isso que a série retrata: adolescentes que, ao não serem ouvidos, constroem identidades em torno do ódio, da misoginia e da vingança.

Jamie não é só vítima. Ele também é agente — e isso é o mais perturbador. Seu gesto de violência é o grito desesperado de quem nunca foi escutado.

Gênero como tecnologia de poder

Joan Scott (1995) ensina que o gênero estrutura relações de poder. Em Adolescência, os meninos são punidos por não performarem virilidade e as meninas, por existirem. Kiera, vítima de bullying e violência, representa o corpo feminino que incomoda a norma. Teresa de Lauretis (1994) chama atenção para as tecnologias de gênero: a escola, a mídia, a família. Todas são máquinas de normalização que dizem como meninos e meninas devem ser. A série desconstrói essas tecnologias ao mostrar seus efeitos: trauma, culpa, solidão.

Juventude em disputa: entre o grito e o cuidado

A adolescência é apresentada não como fase, mas como território político. Um campo de batalha onde afeto é resistência. A série convida o público a ouvir os silêncios que precedem os gritos. A negligência não é neutra — é política.

Jamie, ao abraçar Marcus no episódio final, sem dizer uma palavra, mostra que ainda há possibilidades. A escuta afetiva, o acolhimento verdadeiro e a desconstrução da masculinidade tóxica podem interromper o ciclo de violências.

Escutar é urgente

A série Adolescência é um manifesto silencioso. Não busca respostas fáceis. Não há heróis nem vilões. Só pessoas quebradas tentando sobreviver num mundo que exige muito e oferece pouco. É um chamado urgente para escutarmos os jovens — antes que o silêncio se torne violência.

Como nos lembra Djamila Ribeiro (2018), transformar a vida das mulheres é transformar todas as vidas. Mas talvez seja hora de dizer que escutar e cuidar dos meninos também é um ato feminista — porque sem transformar as masculinidades, seguiremos alimentando a violência.

Por Cláudia Guerra – mProfa. Dra. em História/Unipac e apresentadora do quadro Mulheridades/CBL

Por Cláudia Guerra – mProfa. Dra. em História/Unipac e apresentadora do quadro Mulheridades/CBL

Referências: BOURDIEU, Pierre. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Vozes, 2011.
CONNELL, R. W. Masculinidades. São Paulo: Contexto, 1995.
DE LAURETIS, Teresa. Tecnologias de gênero: ensaios sobre teoria, cinema e ficção. Indiana University Press, 1994.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1979.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.
HOGG, Joanna (Dir.). Adolescência. BBC/Netflix, Reino Unido, 2025.
HOOKS, Bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020.
LÉVINAS, Emmanuel. Ética e infinito. Lisboa: Instituto Piaget, 2000.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
SCOTT, Joan W. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *