Nas páginas do livro
Costumo dividir a vida em três fases: infância, juventude, velhice. A primeira é a base das demais. Assim sendo, quanto mais investirmos na primeira etapa, menos precisaremos nos preocupar com as demais. A Literatura Infantil está entre as melhores ferramentas para este processo de formação, nela encontramos o Amor, o Diálogo, as Brincadeiras e tantos outros. É uma espécie de parceria entre a vida e as artes.
A literatura, em qualquer fase, nos propicia a oportunidade de reflexão, de argumentação… abrindo possibilidades. Por meio dela é possível explorar o conhecimento e desenvolver na criança a capacidade de explorar seus conflitos e encontrar suas próprias respostas, com atitudes conscientes. Cidadão crítico é fonte de desenvolvimento.
Na infância, as brincadeiras representam muito mais do que se pode imaginar. Por meio do ludismo, a criança extrai suas ações, mas também na velhice a ludicidade faz muito sentido. Somente aí, é que se percebe o quanto se perde da vida, por simples falta de se saber viver. A Literatura Infantil, geralmente, apresenta elementos históricos constitutivos da infância, que irão refletir positivamente em seu imaginário. A leitura abre a mente humana, e o universo da pesquisa e da leitura é infinito, portanto, inesgotável.
Há pouco tempo, enquanto lia a história do Museu Guatelli e sua íntima relação com as vivências de seu criador, o italiano Ettore Guatelli, um soldado raso, que, após a Segunda Guerra, se tornou professor do ensino fundamental e, hoje, o museu ensina com base em suas propostas. Então, fiquei a observar a grandiosidade daquelas criações, mas fui fisgada por um carrinho de madeira, com rodas de tampinhas de garrafa, e seu interior, feito de uma latinha de extrato de tomate.
Aquela cena trouxe minha infância de volta, com carrinhos de rolimã, com brinquedos inventados pela mente de uma criança. Quantos brinquedos quebrados, emendados, remendados, e brinquedos outra vez. Ah, cabo de vassoura virava cavalinho-de-pau, mas, na brincadeira, era um alazão. Na literatura, a poetisa paulista Orides Fontela chama isso “Ludismo”, nome dado ao seu poema, que diz:
“Quebrar o brinquedo / é mais divertido. / As peças são outros jogos: / construiremos outro segredo. / Os cacos são outros reais / antes ocultos pela forma / e o jogo estraçalhado / se multiplica ao infinito / e é mais real que a integridade: mais lúcido […]. // Quebrar o brinquedo ainda / é mais brincar”. Esse processo de “reciclagem” é também um processo de ensino e de diversão.
Ora, a infância é um inesgotável universo da imaginação. Nela, a brincadeira é mais intensa, a leitura é mais animada. Por falar em leitura, é na infância que convidamos o ser humano para os livros. Isso acontece bem antes de se aprender a decifrar os códigos da escrita. A criança se apaixona pelos livros quando o adulto faz a leitura para ela, e ainda, ao folhear as páginas, a criança vai imaginando sua própria narrativa, com base nas ilustrações e cores que ela vê.
Walter Benjamin, em sua obra “Magia·e técnica, arte e política…” (1987), às páginas 239-240, escreve: “[…] ‘Mesmo a cartola simples e cinzenta do pai, dotado de grande nobreza moral, e o chapéu amarelo da mãe, de notável formosura, evocam nossa admiração’. Esse mundo de cores, em sua ostentação complacente, é reservado ao livro infantil”.
A criança aprende “com a cor. Pois é essencialmente na cor que a contemplação sensível, desprovida de qualquer nostalgia”, encontra seu elemento literário constitutivo. É nela, na Literatura Infantil, que segundo Benjamim, se encontram “as substâncias mais nobres e mais refinadas”, e somente “o observador perspicaz” é capaz de encontrar tais “elementos, que [se] procura em vão nos documentos reconhecidos da cultura”.
É nessa engrenagem que se move a história. Quando se aplica novas significações a algo, este se amplia. As possibilidades de transformações são infinitas, porque a finitude está dentro da cabeça de cada um, e só existe quando falta atitude. A todo instante, o reinventar-se está nas páginas do livro.
Ivone Gomes de Assis
Escritora brasileira, designer gráfica, editora, fotógrafa de produtos
Mestre em Teoria Literária pela Universidade Federal de Uberlândia
Produz e apresenta o quadro “Ponto de Leitura” na Rádio Universitária FM 107,5